quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Gente e pano

Caminhavam pela enseada de Botafogo. Nas mãos, os restos de um farto jantar esfriavam dentro de uma quentinha de alumínio. Enquanto ele contemplava as luzes da Urca do outro lado da baía, algo no chão prendia a atenção dela.

Um lençol encardido cobria um corpo frágil e imóvel. Aquele homem esfriava na calçada, assim como as sobras esfriavam dentro do embrulho mal feito que carregava.

- Olá... - disse ela.

O bicho humano continuava inerte e calado.

- O que você está fazendo?! – perguntou ele, surpreso ao perceber que ela não o acompanhava na contemplação da estonteante vista que os cercava.

- Quero dar esta quentinha a esse homem.

- Deixe aí no chão, ao lado dele. Não vamos acordá-lo. Pode ser agressivo. – a advertiu.

- Ele não é um cachorro, tem mãos. E é a elas que quero entregar esta comida.

Ela voltou seus olhos para a massa cinzenta no chão.

- Ei, moço. - tentou mais uma vez.

Permanecia imóvel.

- Deixe isso logo aí! É perigoso ficarmos aqui parados. – ele insistia.

Por um breve momento, o medo que a acompanhava a cada passo que dava naquela cidade havia dado lugar a um carinho gratuito e solidário. Parecia que um balde de realidade havia sido derrubado em sua cabeça.

Sentiu-se entorpecida quando sua mente tentou colocá-la debaixo daqueles trapos pútridos, no chão duro de pedrinhas portuguesas, com a barriga vazia de comida, mas cheia de dores e lamentos. Era impossível, inverossímil.

Ela não vivia no melhor dos mundos, mas aquele homem pertencia a um pior, inóspito e cruel. Deu-se conta de suas abissais diferenças quando percebeu que seus maiores problemas se tornariam soluções se, de alguma maneira, pudessem ser transferidos para a vida daquele ser.

“O aluguel aumentou, o carro quebrou, a conta de luz está cara, não consigo terminar a faculdade...” - pensava, no mesmo ritmo apressado de seus passos, que distanciavam-na daquela figura turva, que agora se confundia com as sombras que enfeitavam a noite.

De longe, pôde ver a embalagem metálica da quentinha reluzir: mãos haviam surgido do meio daquela mistura de gente e pano despejada chão. “É só mais um homem”, ela sussurrou para si.

Aconchegada no banco traseiro do taxi, se perdeu na bela vista do Aterro do Flamengo e em seus problemas. “Que péssimo serviço o desse restaurante”, lamentou.

11 comentários:

  1. Caramba! Belíssima crônica. A dor de existir encontra-se no espelho da dor do outro, que sequer tem o direito de existir.

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  2. vc escreve sutilmente sobre a dor humana e as diferenças que nos distanciam. <3
    marina anjocarmim

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  3. Como sempre, um texto belíssimo...

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  4. Crônica maravilhosa, parabéns menina, continue firme.

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  5. "Sentiu-se entorpecida quando sua mente tentou colocá-la debaixo daqueles trapos pútridos, no chão duro de pedrinhas portuguesas, com a barriga vazia de comida, mas cheia de dores e lamentos. Era impossível, inverossímil." Empatia, o grande problema da humanidade! Parabéns pelo texto!

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  6. Que beleza de crônica Larissa. Sensibilidade à flor das palavras. Parabéns! Se me permite, gostaria de replicá-la no meu blogue: www.atalmineira.wordpress.com.
    Vá com tudo.

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  7. Excelente crônica, sua sensibilidade conserva a mocidade imortal de sua alma, parabéns garota! Siga! O mundo precisa de jovens como você!!

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  8. Parabéns...
    Um péssimo serviço desse restaurante. Perfeito...
    Que teus olhares continue a iluminar-nos.
    Parabéns...

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  9. Doce e inquieta Larissa.
    Parabéns pela crônica.
    Além de deliciosa, também é repleta de significados.
    Um beijo com admiração e imenso respeito pelas suas inquietações.
    Profª Leila (Facha)

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  10. A maior recompensa que um autor pode receber é saber que seus leitores puderam sentir cada entrelinha de seu trabalho. Muito obrigada a todos! Atalmineira, é claro que você pode replicar o texto em seu blog. Beijos!

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