Um lençol encardido cobria um corpo frágil e imóvel. Aquele homem esfriava na calçada, assim como as sobras esfriavam dentro do embrulho mal feito que carregava.
- Olá... - disse ela.
O bicho humano continuava inerte e calado.
- O que você está fazendo?! – perguntou ele, surpreso ao perceber que ela não o acompanhava na contemplação da estonteante vista que os cercava.
- Quero dar esta quentinha a esse homem.
- Deixe aí no chão, ao lado dele. Não vamos acordá-lo. Pode ser agressivo. – a advertiu.
- Ele não é um cachorro, tem mãos. E é a elas que quero entregar esta comida.
Ela voltou seus olhos para a massa cinzenta no chão.
- Ei, moço. - tentou mais uma vez.
Permanecia imóvel.
- Deixe isso logo aí! É perigoso ficarmos aqui parados. – ele insistia.
Por um breve momento, o medo que a acompanhava a cada passo que dava naquela cidade havia dado lugar a um carinho gratuito e solidário. Parecia que um balde de realidade havia sido derrubado em sua cabeça.
Sentiu-se entorpecida quando sua mente tentou colocá-la debaixo daqueles trapos pútridos, no chão duro de pedrinhas portuguesas, com a barriga vazia de comida, mas cheia de dores e lamentos. Era impossível, inverossímil.
Ela não vivia no melhor dos mundos, mas aquele homem pertencia a um pior, inóspito e cruel. Deu-se conta de suas abissais diferenças quando percebeu que seus maiores problemas se tornariam soluções se, de alguma maneira, pudessem ser transferidos para a vida daquele ser.
“O aluguel aumentou, o carro quebrou, a conta de luz está cara, não consigo terminar a faculdade...” - pensava, no mesmo ritmo apressado de seus passos, que distanciavam-na daquela figura turva, que agora se confundia com as sombras que enfeitavam a noite.
De longe, pôde ver a embalagem metálica da quentinha reluzir: mãos haviam surgido do meio daquela mistura de gente e pano despejada chão. “É só mais um homem”, ela sussurrou para si.
Aconchegada no banco traseiro do taxi, se perdeu na bela vista do Aterro do Flamengo e em seus problemas. “Que péssimo serviço o desse restaurante”, lamentou.
Caramba! Belíssima crônica. A dor de existir encontra-se no espelho da dor do outro, que sequer tem o direito de existir.
ResponderExcluirvc escreve sutilmente sobre a dor humana e as diferenças que nos distanciam. <3
ResponderExcluirmarina anjocarmim
Como sempre, um texto belíssimo...
ResponderExcluirCrônica maravilhosa, parabéns menina, continue firme.
ResponderExcluir"Sentiu-se entorpecida quando sua mente tentou colocá-la debaixo daqueles trapos pútridos, no chão duro de pedrinhas portuguesas, com a barriga vazia de comida, mas cheia de dores e lamentos. Era impossível, inverossímil." Empatia, o grande problema da humanidade! Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirQue beleza de crônica Larissa. Sensibilidade à flor das palavras. Parabéns! Se me permite, gostaria de replicá-la no meu blogue: www.atalmineira.wordpress.com.
ResponderExcluirVá com tudo.
Claro!
ExcluirExcelente crônica, sua sensibilidade conserva a mocidade imortal de sua alma, parabéns garota! Siga! O mundo precisa de jovens como você!!
ResponderExcluirParabéns...
ResponderExcluirUm péssimo serviço desse restaurante. Perfeito...
Que teus olhares continue a iluminar-nos.
Parabéns...
Doce e inquieta Larissa.
ResponderExcluirParabéns pela crônica.
Além de deliciosa, também é repleta de significados.
Um beijo com admiração e imenso respeito pelas suas inquietações.
Profª Leila (Facha)
A maior recompensa que um autor pode receber é saber que seus leitores puderam sentir cada entrelinha de seu trabalho. Muito obrigada a todos! Atalmineira, é claro que você pode replicar o texto em seu blog. Beijos!
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